Como é engraçado, né, justo o texto sobre o Tempo, à deriva, demorar nove meses para nascer. Desta vez foi mesmo uma gravidez. E com gravidade! Escrevi em 8 de março. Muita coisa aconteceu, desde então. Mas ainda concordo com minhas palavras. Pode haver lacunas, porque não mexia nesse assunto há muito tempo. Divirtam-se!
Saturno se despediu de Aquário e, por mais que o aspecto com meu grau natal já tenha passado há tempos, é sobre meu possível Senhor da Natividade que estou falando. Como me acompanha fortemente durante a vida, especialmente nos últimos não 2,5, mas 5 anos, nada como inaugurar esta newsletter com uma despedida — que na verdade é um estabelecimento.
Na véspera da mudança de signo dei uma literal choramingada, afinal minha relação com esse astro em especial é especial, e ele sai de um retorno para uma peregrinação. Porém montando o texto esse novo caminho foi tomando forma (porque o caminho se faz caminhando) e percebi que não tenho que pensar apenas em abandono do rei de sua casa, mas sim na aventura de sua jornada em mares alheios.
Tudo que é sagrado é profanado
Pretendo pular aqui a parte sobre acusações de “romantização”, cancelamento e releitura-anacrônica-pós-verdadeira dos mitos de deuses, heróis e símbolos milenares. É por esse tipo de bobagem que gostaria de abandonar as redes sociais. O caso mais esdrúxulo que presenciei foi inclusive sobre isso: entrei no grupo de whatsapp de uma colega astróloga tradicional para receber notícias e interagir com pessoas (eis meu primeiro erro) e não aguentei cinco minutos, já que um seguidor na primeira vez em que se manifestou, se referiu ao Tempo como “Chaturno”. Pelo amor de deus, não tenho estômago pra isso.
Obviamente minha expressão artística pode parecer uma romantização — e eu não estou nem aí —, até porque sou gaiata no navio da astrologia, tendo feito um curso e apenas lido coisas soltas por aí, sem ter escrito ou previsto nada de fato. Mas tudo tem seu pontapé numa porta, e se um não-querido pode chamar este belo planeta de “Chaturno”, quem sou eu para me calar.
I know it's everybody's sin
You got to lose to know how to win
E outra: sabe-se que boa parte daquilo que é pré-cristão está “acima do bem e do mal”, então, por mais que sim, hajam grande e pequeno maléficos na astrologia, eles são necessários como limite dos benéficos: Júpiter não seria o Grande Benéfico e Vênus a Pequena Benéfica se não houvessem seus correspondentes, e vou dizer mais sobre isso um pouco adiante. Sem a maleficência de Saturno não teríamos ossos, pele, cabelos, unhas, chão para pisar, agricultura, Tempo para viver. Vida necessita de Morte e essa estrutura é delimitada pelo Tempo. Então me poupem. Minha fé é ctônica, já adianto. Advogo pelos marginais e pelas sombras. Tenho fé no memento mori e na pele e no coração o lema ora et labora.
Minha relação com o Tempo é eterna e fundamental: sou historiadora de formação há aproximadamente dez anos. E é sob a perspectiva do respeito histórico — que nem todo mundo tem, inclusive os próprios historiadores — que sempre vou acabar me expressando.
Não sei se isso é explicável através da astrologia, mas é absolutamente possível, porque nunca tive freio para acreditar na possibilidade das coisas, que eu já tenha tomado certas atitudes de um Saturno em Peixes, semanas antes. Uma analogia próxima são os signos mutáveis que representam a mudança de estações e, portanto, têm características tanto da atual como da próxima.
The Empyrean
Separei há semanas alguns trechos que recuperei de textos do John Frusciante, que é uma pessoa (pisciana de lua em aquário e ascendente inalcançável) que eu levo para a vida no meu peito desde meus quinze anos. São relatos sobre meu disco favorito, The Empyrean, que eu lia sonhadora e desesperadamente em 2009 e hoje percebo como combinam profundamente com o Corpus Hermeticum e coisas do tipo.
Para quem não sabe, John Frusciante é guitarrista da Red Hot Chili Peppers, e tem um casamento cheio de vaivéns com a banda. Da primeira vez (com Saturno em Aquário!) ele rompeu com a banda por não acreditar ou aguentar o sucesso e fama internacional, e a responsabilidade ou comportamento esperados para um rockstar. Se afundou muito nas drogas, a ponto de quase morrer ou perder os dois braços por conta de abcessos causados por heroína e cocaína injetadas. Nesse meio tempo lançou dois dos meus discos favoritos dele, os que mais me aproximaram de arte até os dias de hoje. E pasmem os goodvibers: ele não tem vergonha nem remorso por tudo o que viveu. Entende que foram experiências necessárias para chegar onde chegou.
We should be grateful to the gods
Whoever they're real to they are
I value my placement as in Hell
Remember that moment that I fell
— Central. John Frusciante, 2009.
Anos depois se recuperou, voltou para a banda, saiu de novo e lançou The Empyrean (meu favorito absoluto: a velha guarda que me acompanha sabe que meu primeiro e mais antigo nickname é centralheaven), que fala muito de suas experiências e é como uma “jornada do herói” guitarrística, onde ele fala bastante sobre espiritualidade (vozes disseram a ele para continuar e não desistir da vida, ele sempre afirma isso), luz e sombra, etc. e tal. Agora, novamente num Saturno em Aquário, John retornou pela segunda vez ao RHCP e lançou Unlimited Love.
Não me interessa fazer ninguém crer em nada aqui, mas acredito que tudo isso deva ser lido como símbolo, signo, alegoria, emblema, ou qualquer coisa do tipo. Sou do tipo que acredita que se aprende sim pelo amor e pela dor, porque aprendizado é, antes de tudo, experiência (e se a pessoa não aprende, eu lavo minhas mãos: a dor ensina; cabe ao dolorido querer aprender), e não há quem vá retroceder isso em mim.
He realizes that confusion and pain have been as much the cause of what’s made his life meaningful and pleasureful as things he mistook for being pure goodness. Everything here contains its contradiction and so up and down, left and right, forwards and backwards, happy and sad, pleasure and pain, are each two things, which are one. And all things we believe to be separate are one thing.
Ele percebe que confusão e dor têm sido tanto a causa do que tornou sua vida significativa e prazerosa, como coisas que ele confundiu como sendo pura bondade. Tudo aqui contém sua contradição, e assim cima e baixo, esquerda e direita, frente e atrás, feliz e triste, prazer e dor, são duas coisas que são uma. E todas as coisas que acreditamos ser separadas, são uma coisa só.
The triumphant aspect of feeling great depends on one having absorbed pain. Appreciating your own value can be achieved to whatever degree you have faced feelings of your own worthlessness. Opposites give one another their meaning.
O aspecto triunfante de se sentir bem depende de alguém ter absorvido a dor. Apreciar seu próprio valor pode se alcançado em qualquer grau em que você tenha enfrentado sentimentos de sua própria inutilidade. Opostos dão um ao outro seu significado.1
John Frusciante
Quem não compreende a severidade, não pode compreender minimamente a leveza da vida, pois uma coisa é o limite da outra. Em algum livro de Rousseau que devo ter lido há dez anos, ele diz algo que martela até hoje em minha mente, que é mais ou menos assim: num mundo hipotético onde todo ser humano existente é escravo, na realidade ninguém é escravo. Porque Tudo é Nada (e Nietzsche diz algo do tipo também n’O Nascimento da Tragédia. Isso está em tantas obras quanto há gente no mundo.
Lo-lo-lose yourself in the far off worlds
That are right under your feet
Switch below with above all the way up into infinity
— Central. John Frusciante, 2009.
Outro exemplo maravilhoso dessa perspectiva é Raul Seixas e suas Caminhos I e II: “o caminho da mão é o punhal, o do santo é o deserto; o do amor é o destino, o caminho do velho é o menino; o caminho do risco é o sucesso, o do acaso é a sorte, o caminho da dor é o amigo, o caminho da vida é a morte”.
Fantasia
Do dia 1 de março pra cá, devo ter assistido Fantasia (1940) umas cinco vezes, pois passa todo dia na TV8 e eu não resisto a Tchaikovsky e Stravinsky com cenas tão bonitas. Até postei o demônio da Night on Bald Mountain, que fala justamente da Noite de Valburga (a famigerada Beltane no hemisfério norte, e Samhain para nós). Acontece que a cena que achei mais bonita para postar é quando ele se recolhe desolado dentro de suas asas morcegas e se transforma novamente no topo da montanha, ao badalar que indica aos mortos que voltem para suas covas. Para pessoas góticas como eu é a melhor história do filme, e ver a Noite de Valburga se acabar é uma tremenda tristeza.
Me dei conta depois que esse morcegão desolado e recolhido numa tela azul escura poderia ser muito bem Saturno peregrinando em Peixes, coisa que aconteceu dia 7 de março. Ele saiu de seus domínios (no meu caso de seu júbilo também) para terras estrangeiras. Não chega a ser um exílio: é uma peregrinação, é um sem-domínio navegante. Fantasia, além da composição de Modest Musorgskiy, ainda dá conta de representar o signo das águas profundas e mutáveis.
Vamos escolher bem melhores condições
Longe desse triste carnaval de ilusões
Navegador!
Deixa os que sonham em ser felizes
Habitando o paraíso
Navegador!
Já faz tempo que esperou
Vivendo sob leis que não criou
Navegador
Agora chega de fantasia por enquanto, em breve falarei detalhadamente sobre um ou dois trechos do filme. Se inscreva e aguarde publicações futuras. 😈
There's a future that's calling
But I don't see it coming
—Heaven. John Frusciante, 2009.
Eu achei que diria da minha experiência pessoal com o Saturnão véi de guerra. Mas percebi que tenho limites (aprendi com ele!) e isso não vem ao caso. Na verdade, tudo o que vivi com esse Aqualung escorre entre meus dedos, define minhas palavras, escolhe minhas referências, molda minha comunicação e visão de mundo. Para resumir a história, posso dizer que vivi pelo menos 27 anos dormindo acordada, mas que nos últimos 4 fui chacoalhada nessa cama desconfortável que é o mundo e tive que viver, pela primeira vez. É duro, eu sei, mas se fosse mole não teria a menor graça. Nunca gostei do mundo puramente cor-de-rosa, pois nunca vivi nele; e jamais viveria, sabendo que tanta gente é também impedida. Severa? Sim, pois já dizia o Cabral (de capricórnio): que Morte e Vida (é) Severina.
Come, my love, be one with the sea
Rule with me for eternity
Drown all dreams so mercilessly
And leave their souls to me
— Davy Jones. Fia Orädd (letra), Hans Zimmer (música)
Por fim, como o Universo é um correspondente, quando já estava pensando em retomar esse rascunho, topei com este trecho do meu amado Albert Camus (de lua saturnina) que achei, poxa vida, tão… Saturno em Peixes:
Esses livros dilacerantes, em que a criatura é esmagada, mas onde a vida é exaltada a cada página, são fontes inesgotáveis de força e de piedade. Encontramos aí a revolta e o consentimento, o amor indomável e sem termo, a paixão pela beleza2, a linguagem mais elevada, o gênio enfim. “Para perpetuar seu nome”, dizia Melville, “é preciso esculpi-lo sobre uma pedra maciça e lançá-lo ao fundo do mar: os abismos duram mais do que os cimos.” Os abismos têm, de fato, sua virtude dolorosa, assim como o injusto silêncio em que viveu e morreu Melville, e o velho oceano que ele lavrou sem descanso.
— Albert Camus, A inteligência e o cadafalso, p. 22
Tradução minha. Sugestões de melhoria serão benvindas.
“A Paixão pela beleza” é um ótimo exemplo de Saturno que se exalta no venusiano signo de Libra, e que foi cirurgião responsável pelo nascimento de Afrodite Urânia, ao ceifar os testículos do pai.
recebo sua newsletter, depois de ouvir maria bethânia cantando oração ao tempo! obrigada, querida. veio no tempo certo.