Lendo como o diabo e dançando com a realidade
Apreendendo os arcanos menores aos pouquinhos
Acompanhando e lendo Camelia Elias, comecei a investigar os arcanos menores no sentido inverso com o qual estudei os maiores, desta vez indo da prática para a teoria: no momento mais vendo a imagem e pensando nos números do que de fato mergulhando nos livros; também tiro agora um jogo linear para cada dia. Há um tempo eu tirava um arcano por dia, ou no máximo uma dupla. Cheguei também a fazer um jogo simples que aprendi com Conry de
: o que evitar + energia do dia + o que nutrir, ou algo semelhante.Mas depois parei. Sempre vou me interrompendo porque sigo muitas vertentes de tarólogos e cartomantes e essa onda de opiniões sobre a relação alheia com o oráculo me inunda e me deixa de ressaca. Fui até ler Tarology para ver se algo destravava em minha mente, já que o Enrique Enriquez é tão “marginal” e “transgressor”. Vou ser bem sincera aqui: não me conectei de modo algum com seu humor, e acho engraçado como ele pode ser válido e o Jodorowsky1 não, sendo que ambos praticamente dizem, cada um à sua maneira (eu estou avacalhando, claro), “foda-se o passado e o já pesquisado e escrito, vamos brincar com palavras e símbolos”. Creio que, por ser originalmente um jogo, cartas de jogar, o tarot merece ser tão teórico quanto prático e criativo, pelo próprio bem de sua existência.
Não que eu queira concordar com todas as imaginações do Jodorowsky, História para mim é sagrada e eu tenho zero paciência com aquela noção que alguns alimentam de “jogue teu livro fora”. Mas a cartomancia também tem seu lado intangível e pouco documentado — porque quem documenta os pobres? — que é o de cartomantes da marginalia, do anonimato, do analfabetismo, da bebida alcoólica, da esquina da feira, dos becos, dos prostíbulos e quartinhos escondidos atrás de ambientes comerciais para fugir da sanção policial de qualquer Estado.
Quando pensamos em Papus, Wirth, Marteau, ou mesmo Enriquez, não estamos pensando em quem amarrotou cartas uma vida inteira. Não invalido os teóricos, mas valido os práticos. Invalido sim as mentiras históricas sem fundamento e estrutura sobre a origem do tarot — que não, não tem a ver com Hermes, nem com aliens, mas sim com trocas comerciais entre oriente e ocidente, com nossa pista mais antiga sendo Florença, Itália (e não Egito) pouquíssimo antes da metade do século 15.
Quando digo criativo (e me seguro aqui para não fazer um jogo de palavras cafona, então digo do ato de criar), não falo de ignorar o passado e o que se construiu ao redor desses 78 arcanos, mas justamente respeitar o que há de basilar para esse sistema, especialmente sua história de origem (a História respeita os mortos), e a partir daí fazê-lo dançar com o que é específico da contemporaneidade. Criar é comungar, adicionar, multiplicar. Vir de algum lugar. E que esse lugar seja verossímil, se não verdadeiro. Criar é dançar com a realidade.
Dei essa volta histórica mas volto ao Enriquez porque, mesmo sendo um pouco mais chato do que interessante de ler (jogo de palavras possui uma linha muito tênue entre a pouca boa poesia e a cafonice de “sobre viver/sobreviver”), ele me trouxe o que precisava, que era uma dose de jogatina e malemolência para o jogo. Depois, fui ler a Camelia, com quem não concordo 100% também (quase), mas tenho muito mais afinidade com o humor, porque qualquer coisa ela manda tudo ao diabo. E ela faz algo raiz que cartomantes não fazem mais depois da pandemia e dos posts sempre iguais de escolha uma carta. Ela mete uma leitura linear aleatória fotografada de qualquer jeito em sua mesa na Dinamarca (ela é romena) e posta uma legenda de instagram dos velhos tempos comentando uma historinha. Read Like the Devil.
The Charioteer thinks, ‘I’m glad I’m done with all that tiresome past, I’m so out of here,’ only to find himself going in circles. Not all eager men who come to me with their excitement get the message they’re hoping for. ‘You’re going in circles,’ I tell them, ‘do you realize that?’ I ask them, and then wait for their coin to drop. When the coin does drop after denial is dissipated, the appropriate reaction sets in: ‘oh fuck.’
O cocheiro pensa “Estou feliz por ter dado um fim nesse passado cansativo, tô fora” apenas para se encontrar andando em círculos. Nem todo homem ansioso que chega a mim com entusiasmo recebe a mensagem que está esperando. “Você está andando em círculos”, digo a eles, “percebe?”, pergunto, e espero a ficha cair. Quando a ficha cai depois de se dissipar a negação, a reação apropriada se dá: “ô porra…”.2
Então pensei: também quero fotografar minhas cartas na mesa de um jeito qualquer e ler do meu jeitinho (opa, acho que sempre fiz isso). Dandem-se os aliens, as frases misteriosas que quase nada comunicam ou a Nota 73 do Livro Tal. O que aquelas cartas disseram para o que vivi? Eu basicamente quero preencher essa newsletter com o que me der na telha porque sigo na esperança de usar cada dia menos o instagram e ter que lidar cada vez menos com opiniões de outros olhos sobre as minhas leituras. Se uma combinação de cartas dissesse uma coisa só, não interessaria quem é o cartomante, só as cartas e, sendo assim, uma porcaria de inteligência artificial poderia nos roubar o emprego, correto? Mas nem a matemática é ciência tão exata, e quem me lê o faz porque gosta de como sorteio as palavras para dizê-las.
Sim, é bem verdade que sempre disse o que quis. Talvez essas travas tenham menos a ver com o que os outros andem ditando (mas, ainda assim, tem), e mais com minha incapacidade de perceber que sei o que estou fazendo. E só sei perceber escrevendo. Por isso mesmo prefiro a leitura não-ao-vivo, porque tenho Tempo de escrever. Tem que fazer sentido para mim primeiro, e isso demora. Ter informação não significa obter conhecimento, muito menos produzir sabedoria.
Lendo como o Diabo
Essa linear foi tirada num dia que eu tinha oficina de encadernação. A primeira coisa que já li foi o seguinte: vou costurar (espadas-agulhas) o dia todo, mas com consciência de que, mesmo sabendo boa parte do procedimento (rainha), devo ter humildade de me lembrar que sou aluna (cavaleiro). Também pensei nos naipes e suas “regências”, onde uma Rainha de Ouros que guarda um Cavaleiro de Copas pode ser quem ama muito o que faz, mas faz independente de amar, então há aquele foco na realização apesar de. Não é somente uma atividade prazerosa que fui buscar toda inocente, mas um aperfeiçoamento do meu trabalho, e as seis espadas (que aprendi com a Thays serem o equilíbrio da oposição), tanto a própria viagem (eu moro distante de tudo) como a adaptação a um lugar de aluna e não professora - e inclusive, pensando agora, tive meu momento de ajudar colegas enquanto o professor estava com outros, quer mais Rainha de Ouros costureira do que isso?
Depois, e aqui eu dedico todo o Cavaleiro de Copas como protagonista dessa cena, fui tomar um café (me mimei com o mais caro, porque era coado e odeio expresso) e depois resolvi desenhar o Jack Black, um homem que definitivamente tenho como meu tipo, já que estava cantando e ouvindo Peaches desde que acordei (o próprio Cavaleiro de Copas emocionada com a voz do Bowser se declarando para a princesa Peaches em todo o caminho do trem e metrô). E ficou lindo! As seis espadas, por mais que pertencentes do elemento ar, eu digo que são meus gestos no ar com as várias canetas que usei (que foram seis hahaha), a atividade que esvaziou minha mente do cansaço, a viagem mental que fiz nas linhas do rosto e do corpo do meu querido Bowser, que realizei tão Rainha de Ouros, paciente e cuidadosa (coisa que não sou sempre ao desenhar, faço rápido e desisto), já que foi o primeiro Jack Black que desenhei na vida.
Persistência, humildade, muita emoção, agulhas e pontas de caneta de tamanhos diversos. E ah! O álbum que aprendi a fazer é para gravuras. Quer mais espada que uma ponta seca, mais moeda que uma placa de cobre e mais taça do que garrafas de ácido e thinner?
Wow, ler como o Diabo é realmente divertido.
⛧ 𝕳𝖊𝖑 ⛧
Referências
Comprando pelo meu link de associada, você já colabora com meu trabalho sem gastar nada a mais com isso e, de quebra, constrói aos poucos sua biblioteca oracular. Win-win 🥂
BEN-DOV, Yoav. O Tarot de Marselha revelado: um guia completo para seu simbolismo, significados e métodos.
CAMARGO, Thays. Arcanos menores: como estudar?
ELIAS, Camelia. Read like the Devil.
ENRIQUEZ, Enrique. Tarology.
JODOROWSKY, Alejandro. O Caminho do tarot.
JODOROWSKY, Alejandro. La Danza de la realidad.
MARTEAU, Paul. Tarot de Marseille.
NADOLNY, Isabelle. História do tarô: um estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo.
SOARES, Julio. Origens históricas do tarot.
Leitura oracular
Se você quiser uma leitura de tarot, há algumas informações aqui, e você pode mandar um e-mail para
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