O Valete se deparou com a Mulher nua, distraída e alegre em seus afazeres. Ela lavava no rio duas taças douradas, enquanto cantarolava com os pássaros.
Silencioso, retornou e relatou o que viu à Rainha.
“Como assim, uma sem eira, nem beira, possuindo — e utilizando, sem cerimônia — duas taças do mais puro ouro? Traga-as para mim imediatamente!”
O Valete obedeceu e, sorrateiro, furtou as taças que traziam alegria e eram única posse da mulher.
A Rainha, então, trancafiou-as numa cristaleira na qual somente ela tinha acesso.
“Pronto, esse tesouro estará mais bem guardado aqui.”
Anos se passaram, e a Rainha pessoalmente fazia o papel de segurança das taças. Acontece que não havia perigo nenhum rondando esses objetos. Ninguém nunca ousou entrar no castelo, e mais: ninguém nunca soube da existência desse tesouro. Simples camponesa, a Mulher jamais tentou reaver suas posses. Mas, ainda assim, a Rainha permanecia exausta, com sua espada em riste.
O inimigo? Ninguém. O inimigo? O vidro que refletia, como espelho, sua cara assustada e suas mãos, com os nós dos dedos brancos de pressão, empunhando a tão pesada espada. O inimigo, portanto, era ela mesma.
Passou décadas alerta em seu posto, sem convidar ninguém para beber vinho nelas, que já estavam opacas de poeira impregnada no metal. O uso destinado a esses objetos foi abortado no momento da conquista do Valete. De objetos de comunhão e brinde entre os felizes, que selariam pactos, alianças, casamentos… a meras tralhas — de ouro, mas tralhas — escondidos nas alcovas (ou masmorras?) reais.
Por que ter e não usufruir? Para que guardar? Para uma ocasião oportuna? Quando será? Será algum dia? O que espera, Rainha? Quem espera? Qual ocasião especial, qual convidado de honra adentrará os teus domínios? Vale a pena comemorar as bodas de diamante de uma ocasião que nunca chegará? Tantas toalhas, talheres, jogos de jantar que comemoram sessenta anos de um casamento nunca consumado. Às vezes, simples copos de vidro e panos de prato sobrevivem, intactos, a um divórcio ou viuvez.
Certa estava a simples Mulher, que compartilhava com alegria suas taças limpas com os pássaros. Juntos, se refrescavam debaixo da noite estrelada.
A Rainha, sozinha, se cansava em lutar contra ninguém, e perdia o tempo e a chance de convidar pessoas para brindar com elas, para tomar um café que fosse.
Para que proteger tanto aquilo que deve ser compartilhado? Por que criar barreiras contra ninguém, senão contra o próprio reflexo no espelho? Quem vence a guerra em que se luta sozinho — e contra si próprio?
Deixe jorrar os líquidos das taças tornando ferrugem todo aço perfurante, fazendo brilhar novamente todo o ouro guardado e protegido de ninguém.
Hel
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Cheguei numa época em que nem usar os adesivos do caderno uso mais. Sou o rei de imagens que nunca serão vistas. Gostei, Hel.